4.9.06


UM MUNDO SÓ MEU


Achei engraçado. No domingo passado, último do século, quase todas as tvs, quase todos os jornalísticos, contavam, ou tentavam contar, a história do período. Que mundo é esse? Não o tenho em minhas memórias. Retrospectiva de quê? Do século? Não tenho esse tempo todo em minhas costas. São apenas trinta e um. E de que me falam? De deuses, de mitos, heróis? Definitivamente, esses não pertencem ao meu mundo. Aqui eles são diferentes. São humanos. De carne e osso, como eu. Senti falta de personagens marcantes e de fatos que permearam os pouco mais de 30% em que me vi prejudicado na reportagem.

Onde estava a dona Damares, dona da fábrica de picolé lá da pracinha do colégio? Ninguém lembrou de mostrar o duro que ela dava para espremer todas aquelas frutas. E ainda ralava o coco pra fazer sorvete. Afinal, sorveteria sem picolé de coco não dá. E Irmã Anunciação? É! A diretora do colégio da ordem das irmãs capuchinhas. Ginásio da Escola Normal Nossa Senhora de não sei mais lá do quê. Não falaram dela nem um só segundo. Parece até que não dão valor às vezes que fiquei de castigo no meio do pátio do colégio pegando aquele sol do pingo do meio-dia. Esta merecia. Construiu um ginásio de esportes só com donativos. Tenha dó. Ela tinha que, no mínimo, ser citada.

E esse Bítus, bítlous, bítous? Não sei nem como se escreve. Não vejo graça alguma. Um bando de cabeludo doidão. Era muito melhor terem colocado imagens do ensaio da banda da escola do lado do muro do cemitério (para não incomodar ninguém) com o maestro bradando por harmonia. Sete de setembro. Muito mais bonito seria o desfile da guarnição municipal do Tiro de Guerra do que botar aquele cara levando um tiro e tendo seus miolos estourados em pleno passeio com a família. John quem? Sei não. Nada disso foi mostrado.

Não falaram nem do meu pai. Nunca roubou nem matou. Não lembro de ninguém, nunca, ter batido na porta da minha casa pra cobrar algo ou falar mal dele. Como um homem desses fica fora de uma retrospectiva? E não vou nem falar da minha mãe. Queria era ver minha vida ali. Algo que mexesse comigo de verdade. Minha primeira namorada, primeiro beijo. A primeira queda de “mobilete”, o primeiro gesso. Nada disso tinha ali. E a Solange, a Penha, que cuidaram de mim e das minhas irmãs, onde estavam? Ninguém tem idéia do duro que elas deram pra ajudar minha mãe a nos criar. Por que não foram filmadas? Dava sim. São só trinta anos. Trinta e um, verdade. Mas, importantes. E olha que nem estou questionando o período mais próximo. Aí sim, teria ainda mais queixas. Imagine se ia deixar passar em branco a minha primeira prancha de surf! E o nascimento do meu filho? Fora de cogitação. Minha formatura. Ou está pensando que concluir um curso superior é moleza? Ainda teria o primeiro dia de aula do meu filho... Ah, tá certo! Então ficaria para a retrospectiva dele. Do mundo dele, que com certeza será bem diferente do meu. Bem diferente desse que mostraram na tv.