8.10.08

Brincando de ser feliz

Duzentos e dois quilômetros. Essa é a distância que separa o pequeno lugarejo do Cassó, da capital do estado, São Luís. Ligado ao município de Primeira Cruz, o lugar, uma pequena vila onde se vive da pesca e da produção da farinha de mandioca, é um lapso do paraíso na terra. Em uma lagoa de águas mornas e cristalinas, a vida do pequeno lugar se desenvolve na velocidade do seu esquecimento. Uma única rua com casas de pau-a-pique e outras poucas de alvenaria mal alinhadas, sufocadas pelas areias brancas e finas, constroem o cenário local. Sem praças ou coretos, a igreja de São Francisco de Assis fica entregue ao tempo que parece nunca passar ali.

Ladeado por uma única árvore, o singelo templo que é a primeira edificação que se vê quando chegamos ao povoado serve, indiscutivelmente, como um portal de entrada para o paraíso.

Neste universo, às 2h da madrugada a família de Soledad, uma mulher comum de, aproximadamente, 40 anos, começa a lida diária na casa de farinha que fica no terreno em frente à casa dos seus pais e irmãos. De frente para a bela lagoa, no jardim da casa de dona Francisca, a matriarca, um pequeno papagaio, conhecido como ‘lôro’ e tratado como um ente muito especial da família replica os chamados dos visitantes, tendo sua voz confudida com a da própria dona da casa.

De forma natural, mesmo com aparatos tecnológicos como geladeira e rádio presentes (existem casas na vizinhaça até com TV), a água guardada em filtro de cerâmica preserva um inconfundível gosto de infância.

A fé daquele povo estampada nas paredes da casa, entre frases e fotografias, era a confirmação da felicidade baseada em preceitos cristãos.

Após quase 10 horas de trabalho puxado, na beira dos grandes tachos de ferro sobre o forno torrando o pão de cada dia, os homens da família sorriam e conversavam alegremente, menosprezando a exaustão. No semblante de cada um deles, a certeza da honestidade e um sorriso caloroso na chegada dos visitantes. Entre eles, a pequena Bruna, com pouco mais de dez meses de vida, engatinhava entre os cestos de mandioca e latas de querosene vazias. Um único brinquedo, um velho e sujo aviãozinho bicolor arriscava-se junto com as pequeninas mãos da criança, perto dos dentes afiados da moenda motorizada.

Ainda no peito da mãe, Bruna fitava todos com um olhar expressivo e ligeiramente triste. Sem ‘grunhidos’ ou balbúcias ela, com olhos negros já quase vencidos pelo intenso calor, pedia colo. Colocada na rede aonde, anteriormente, ao chegarmos, dormia o seu avô, a simpática e cativante recém-nascida embalava seu próprio sono com uma cantoria intimista, enquanto sua mãe, de apenas 22 anos, balançava velha e esgaçada rede.

O domínio pelo sono era percebido com o silêncio da frágil criança que mostrava toda a flexibilidade necessária para viver naquele lugar sem educação, saúde e qualquer outro benefício dado àquela comunidade.

Com a roda montada e a conversa indo de vento em popa no barracão de palhas de buriti, sentados em toras de madeira, cestos ou no chão, dona Francisca e seus familiares apreciavam com uma felicidade apaixonante as fotografias feitas durante a primeira visita à sua casa. Fascinada ao ver a cara de um deles impressas no papel fotográfico, a senhora simpática que havia recebido a todos com um imenso abraço, tinha uma difícil missão: escolher duas daquelas imagens para que fossem ampliadas como presente. A primeira fotografia escolhida era quase óbvia: Francisca e sua família emparelhados na beira da lagoa na frente da casa. A outra, do ente mais querido da família: o papagaio.

Enquanto a conversa vagueava entre temas como agricultura e política, a querida matriarca insistia em nos oferecer café com a tapioca feita ali, na hora, de forma rústica e inigualável, nos tachos de metal varrido às pressas com uma rama de palhas de buriti para tirar as sobras da farinha produzida.

Cento e quarenta reais seria o apurado daquele dia brutal de trabalho. Uma média de 70 reais por uma saca com 50 quilos da farinha. Dez reais a diária daqueles homens que, alegres e cordiais, quase às 5 horas da tarde, depois de 11 horas de trabalho, teimavam em ser gentis e nos dar atenção.

Com a algazarra dos adultos a pequena Bruna, assustada, levantava-se na rede e, lentamente, uma única lágrima brilhante que caia em seu rosto parecia demonstrar um leve descontentamento com a nossa presença já demasiada.
Com a noite caindo era hora de pegar a canoa na lagoa para irmos para casa. De lembrança, uma vasilha de alumínio com o resto das tapiocas feita por dona Francisca e um pote da farinha de mandioca produzida por sua família. Na lembrança, a imagem de uma gente honrada, simples e unida e a certeza de que, independente dos diferentes mundos em que vivemos, o segredo da felicidade depende de um único ‘gestho’*: se deixar ser feliz.

* ‘gestho’ é uma menção carinhosa a o grupo Gesthos criado durante um curso de gestão hospitalar. Há seis anos o grupo vem tornando possível vivenciar momentos especiais como este, através de inúmeras viagens na companhia de grandes amigos.

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