16.11.07

Era uma vez...

Faz tempo que não abro a janela do meu carro. Logo eu que fui criado correndo pelas ruelas enlameadas de uma cidadezinha de interior, colhendo os maracujás que se esgueiravam entre as cercas dos sítios da região. Eu, que fui criado com os pés descalços, que jogava pião e me divertia entre mamonas que voavam sobre minha cabeça em uma guerra insana entre as crianças da minha rua. O único limite para a brincadeira era acabar a munição ou acertar um colega com um pouco mais de força.

Hoje, sinto falta de ver essa infância segura se repetindo na vida do meu filho. Até minha cidade, considerada como a mais verde do Brasil já tem em seus tons um vermelho a mais, pintado pela violência. Assaltos e seqüestros estão cada vez mais presentes. Aqui, na Ilha do Amor (e ódio?!) não me sinto mais à vontade para passear pelas ruas da cidade como fazia no início da minha vida na capital ludovicense, quando jogava minha câmera fotográfica (ainda de filme) sobre o ombro e saía, despreocupadamente, registrando praças, ruas e azulejos, nos finais das tardes de domingo. Era bom poder andar sem olhar para trás. Hoje não sabemos mais, infelizmente, em quem confiar. A gente teme até quando alguém nos pergunta as horas. Mas em quem confiar quando ninguém mais tem uma coisa chamada tolerância? Lembro de quando cursava a oitava série em que, naquela época, um colega de sala perdia o pai assassinado em uma discussão de trânsito. Aquilo era distante, quase lendário. Hoje não. Briga-se por tudo. Ou por nada. Humilha-se. Mata-se por um celular comprado em dez prestações de R$ 9,99 ou, simplesmente, pela falta dele. É esse o preço da vida? A vida tem preço mas não tem valor. O Homem é bárbaro mesmo na sutileza. Deu em todos os jornais há pouco tempo: a vida da jovem de vinte e poucos anos lá da minha cidade natal não valeram nem os setenta e poucos reais da tabela do SUS. Morreu devido à greve. Intransigência? Negligência? Vi-o-lên-ci-a. Estamos fechando cada vez mais as portas para um mundo melhor. Lacrando as janelas da nossa vida. E sinto isso quando tento abrir o vidro do meu carro. Talvez seja esta hoje, uma das grandes proezas da nossa vida cotidiana: conseguir respirar. Vivemos entubados dentro de casa e dos nossos veículos que, na maioria das vezes, inconscientemente, compramos para sermos livres. Amarga ilusão.

Tenho medo de estar perdendo a sensibilidade que ainda me resta. Não consigo mais me emocionar com as cenas reais ou fictícias da tv. Mas ainda me indigno com os fatos do dia a dia. Mesmo com tudo isto, uma luz insiste em reacender em nossas vidas. Na última semana, meu filho de nove anos me pediu que criasse um blog para ele, onde pudesse publicar os resumos dos livros que lê. Isso me trouxe uma esperança. Uma criança que gosta sim dos jogos eletrônicos, vídeos, cheese burguer... Como a grande maioria. Mas também se encanta pelo mundo da leitura, base principal da educação. E esta é a ferramenta necessária para re-humanizar o mundo. Eu criei o blog com o título que ele pediu: Era uma vez...

Espero que um dia ele possa eternizar em seus textos, relatando para seus amigos, filhos e netos que correu por ruas cheias de lama e colheu, à revelia dos cachorros dos vizinhos, as frutas que estavam dentro e fora dos quintais e cercas que passaram em sua vida. Uma vida mais humana e cheia de paz.