15.10.08

PEDRO E A LUA



Quinta-feira, março de 2008. Durante um papo entre amigos alguém pergunta: vocês já viram a lua hoje? Alguns respondem que sim, que está enorme e bela como nunca, outros falam de sua luminosidade... No meio das adjetivações Pedro diz: - Eu nunca mais vi a lua! Aquela declaração soou como uma bomba aos ouvidos dos presentes naquele ambiente. Como seria possível alguém não prestar atenção a tal aparição num cenário lindo como o que se desenha a cada noite de lua cheia na nossa ilha maravilha? Aquela só podia ser mais uma das frases debochadas do nosso amigo Pedro. Mas não era. Aquele rapaz, quase um jovem senhor, às vésperas do seu casamento se dividia entre três empregos e os trabalhos extras realizados para tornar possível um sonho que já não era só seu e sim de todos nós.

Pedro, que largava o seu último emprego por volta das 2 da madrugada, acordava cedo e um pouco antes das 7 da matina já enfrentava o trânsito pré-caótico da cidade para apanhar a sua amada em casa e deixá-la no trabalho.

Vinte e poucos anos, esguio e um exemplo de elegância como pessoa, passava todas as manhãs dividindo-se entre seu emprego e os outros afazeres que, na época, estavam entre escolher vestidos com a noiva, contratar buffet, escrever para a nossa revista, fazer cerimoniais e contratar o carpinteiro para fazer a mobília do novo apartamento.

Na hora do almoço Pedro voltava a buscar a noiva para levar para almoçar, geralmente, na casa dos pais dele, onde várias vezes acabei filando o macarrão. Era engolir, beijo pai, beijo mãe e voltar voando pelo trânsito para deixar a sua companheira novamente no trabalho no horário certo.

Depois disso, Pedro, cansado e ofegante voltava para a sua sala e trabalhava em ritmo acelerado para finalizar todas as suas tarefas até o começo da noite, quando, mais uma vez, apanhava a sua amada no trabalho, a deixava em casa e no tempo que lhe sobrava entre o emprego do dia e da noite, sob o céu estrelado... Não! Ele não olhava a lua. Frequentemente neste meio tempo, Pedro aproveitava para fazer algum extra como mestre de cerimônia para comprar um espelho para o quarto, mais uns centos de salgadinho para o casamento ou pagar uma parcela do carro novo comprado recentemente. Depois disso sim, ele seguia para sua terceira jornada, mais uma vez correndo pelo trânsito e ofuscado pelas luzes dos carros e da cidade.

Pedro é um exemplo de jovem batalhador, com força de vontade, criatividade e profissionalismo, mas a rotina intensa e cruel tirava dele as belezas que a vida nos traz todos os dias. Acredito que realmente ele não via a lua há muito tempo. Talvez nunca tenha olhado diretamente para o sol a olho nu até superar o clarão e ver a esfera incandescente.

Terça-feira, 14 de outubro de 2008. Outro papo entre amigos no horário do cafezinho. Uma nova colega de trabalho perguntava se havíamos visto a lua da noite anterior.

- Lua cheia, lua linda. - Dizia ela
- Eu já disse que nunca olho a lua!– Respondeu Pedro com um tom de irritação, brincadeira e uma sutil frustração.

Aquilo bateu mal em mim. Não acreditava que a rotina continuava a engolir aquele homem que, naquele mesmo instante já desligava o seu computador e seguia para uma nova jornada em um trabalho esporádico em uma feira de negócios.

Quando me dirigia para casa resolvi parar e visitar a grande feira que ficava no meu caminho. Chegando lá, o que me soou familiar foi ouvir a voz do Pedro irradiada por todos os corredores do local, anunciando a programação oficial do evento.

Coincidentemente, dei de cara com ele em um dos corredores e, em uma conversa rápida, observei a linda lua que pairava sobre as torres da bela igreja que ficava no topo das escadarias da praça do evento e disse: - Olha ela ali!

Numa brecha entre os estandes, fios, cabos e placas do evento, cintilante no céu, enfim, Pedro viu a lua.

8.10.08

Brincando de ser feliz

Duzentos e dois quilômetros. Essa é a distância que separa o pequeno lugarejo do Cassó, da capital do estado, São Luís. Ligado ao município de Primeira Cruz, o lugar, uma pequena vila onde se vive da pesca e da produção da farinha de mandioca, é um lapso do paraíso na terra. Em uma lagoa de águas mornas e cristalinas, a vida do pequeno lugar se desenvolve na velocidade do seu esquecimento. Uma única rua com casas de pau-a-pique e outras poucas de alvenaria mal alinhadas, sufocadas pelas areias brancas e finas, constroem o cenário local. Sem praças ou coretos, a igreja de São Francisco de Assis fica entregue ao tempo que parece nunca passar ali.

Ladeado por uma única árvore, o singelo templo que é a primeira edificação que se vê quando chegamos ao povoado serve, indiscutivelmente, como um portal de entrada para o paraíso.

Neste universo, às 2h da madrugada a família de Soledad, uma mulher comum de, aproximadamente, 40 anos, começa a lida diária na casa de farinha que fica no terreno em frente à casa dos seus pais e irmãos. De frente para a bela lagoa, no jardim da casa de dona Francisca, a matriarca, um pequeno papagaio, conhecido como ‘lôro’ e tratado como um ente muito especial da família replica os chamados dos visitantes, tendo sua voz confudida com a da própria dona da casa.

De forma natural, mesmo com aparatos tecnológicos como geladeira e rádio presentes (existem casas na vizinhaça até com TV), a água guardada em filtro de cerâmica preserva um inconfundível gosto de infância.

A fé daquele povo estampada nas paredes da casa, entre frases e fotografias, era a confirmação da felicidade baseada em preceitos cristãos.

Após quase 10 horas de trabalho puxado, na beira dos grandes tachos de ferro sobre o forno torrando o pão de cada dia, os homens da família sorriam e conversavam alegremente, menosprezando a exaustão. No semblante de cada um deles, a certeza da honestidade e um sorriso caloroso na chegada dos visitantes. Entre eles, a pequena Bruna, com pouco mais de dez meses de vida, engatinhava entre os cestos de mandioca e latas de querosene vazias. Um único brinquedo, um velho e sujo aviãozinho bicolor arriscava-se junto com as pequeninas mãos da criança, perto dos dentes afiados da moenda motorizada.

Ainda no peito da mãe, Bruna fitava todos com um olhar expressivo e ligeiramente triste. Sem ‘grunhidos’ ou balbúcias ela, com olhos negros já quase vencidos pelo intenso calor, pedia colo. Colocada na rede aonde, anteriormente, ao chegarmos, dormia o seu avô, a simpática e cativante recém-nascida embalava seu próprio sono com uma cantoria intimista, enquanto sua mãe, de apenas 22 anos, balançava velha e esgaçada rede.

O domínio pelo sono era percebido com o silêncio da frágil criança que mostrava toda a flexibilidade necessária para viver naquele lugar sem educação, saúde e qualquer outro benefício dado àquela comunidade.

Com a roda montada e a conversa indo de vento em popa no barracão de palhas de buriti, sentados em toras de madeira, cestos ou no chão, dona Francisca e seus familiares apreciavam com uma felicidade apaixonante as fotografias feitas durante a primeira visita à sua casa. Fascinada ao ver a cara de um deles impressas no papel fotográfico, a senhora simpática que havia recebido a todos com um imenso abraço, tinha uma difícil missão: escolher duas daquelas imagens para que fossem ampliadas como presente. A primeira fotografia escolhida era quase óbvia: Francisca e sua família emparelhados na beira da lagoa na frente da casa. A outra, do ente mais querido da família: o papagaio.

Enquanto a conversa vagueava entre temas como agricultura e política, a querida matriarca insistia em nos oferecer café com a tapioca feita ali, na hora, de forma rústica e inigualável, nos tachos de metal varrido às pressas com uma rama de palhas de buriti para tirar as sobras da farinha produzida.

Cento e quarenta reais seria o apurado daquele dia brutal de trabalho. Uma média de 70 reais por uma saca com 50 quilos da farinha. Dez reais a diária daqueles homens que, alegres e cordiais, quase às 5 horas da tarde, depois de 11 horas de trabalho, teimavam em ser gentis e nos dar atenção.

Com a algazarra dos adultos a pequena Bruna, assustada, levantava-se na rede e, lentamente, uma única lágrima brilhante que caia em seu rosto parecia demonstrar um leve descontentamento com a nossa presença já demasiada.
Com a noite caindo era hora de pegar a canoa na lagoa para irmos para casa. De lembrança, uma vasilha de alumínio com o resto das tapiocas feita por dona Francisca e um pote da farinha de mandioca produzida por sua família. Na lembrança, a imagem de uma gente honrada, simples e unida e a certeza de que, independente dos diferentes mundos em que vivemos, o segredo da felicidade depende de um único ‘gestho’*: se deixar ser feliz.

* ‘gestho’ é uma menção carinhosa a o grupo Gesthos criado durante um curso de gestão hospitalar. Há seis anos o grupo vem tornando possível vivenciar momentos especiais como este, através de inúmeras viagens na companhia de grandes amigos.